Alegre Sarfaty, Gretta, Gretta Alegre, Gretta Grzywacz, Greta Sarfaty Marchant, Gretta Sarfaty. Todos esses são nomes de uma mesma personagem: a artista nascida na Grécia e radicada no Brasil que abraçou várias cidades, como Paris, Nova York, Milão e Londres. Depois de décadas mantendo-se um pouco distanciada do Brasil e de São Paulo, Gretta regressou nos últimos anos buscando reconstruir, por meio da inserção retrospectiva de sua obra, a história da arte brasileira. Desde seu regresso, assumiu a identidade de Gretta Sarfaty, um nome guarda-chuva que acolhe todas as Grettas que ela foi e vem sendo pela vida – em trânsito e transformações.
Esta exposição surge do diálogo entre a artista, que busca rever sua obra, e um artista-pesquisador, que quer vê-la em sua inteireza e complexidade, como corpo expandido de um contínuo processo criativo em torno da tarefa inacabável de estabilizar uma identidade. Para “Retransformações de Gretta Sarfaty”, selecionamos um conjunto de obras da artista, em fotolitos e pinturas, que explana um aspecto fundamental de sua poética: a sobreprojeção de imagens em múltiplas camadas, ampliações, espelhamentos, distorções, traduções midiáticas, descolorações e recolorações. A apresentação das obras foi pensada como a montagem de uma película fílmica que pode dar voltas em si mesma, num loop no espaço expositivo, passando pela explosão da linearidade no acúmulo obsessivo de repetições – com alterações que vão de gestos radicais a sutis dessemelhanças.
O diálogo entre artista e curador foi se configurando como leitura conjunta de uma ficção, recolhendo os rastros da vida de uma personagem mutante, cheia de nomes e territórios distintos que convergem num corpo expandido em obras. O que vimos juntos nessa recompilação é análogo ao que Bakhtin observou no trabalho de Dostoiévski: “Nós não vemos quem a personagem é, mas de que modo ela toma consciência de si mesma, a nossa visão artística já não se acha diante da realidade da personagem, mas diante da função pura de tomada de consciência dessa realidade pela própria personagem”[i].
No momento da recepção inicial das psico-auto-fotos da artista em desenhos, pinturas e fotos na segunda metade dos 1970, o crítico Olney Krüse descreveu a ambiguidade dessa persona: “Gretta, jovem, bonita, rica, elegante, casada, inteligentíssima, poderia ser muito parecida com a maioria de seus colegas famosos e ‘importantes’, atuando, com muita malandragem, nas artes visuais do Brasil. […] Acontece que esta menina trabalha enquanto os outros traem e mentem”[ii]. Krüse repercutiu o conjunto de obras que Gretta apresentou em 1976, na Galeria Global, de São Paulo, organizada por Franco Terranova sob o título de “Metamorphosis”, com dois aspectos salientados: “O primeiro deles, uma série de fotos que Gretta faz de seu rosto (belo, natural, sem nenhuma mentira; sem nenhuma operação plástica real ou imaginária) até a distorção total de uma bruxa. Depois das fotos ela faz desenhos incríveis”.
A exposição que agora apresentamos no auroras, quase cinquenta anos depois, também recapitula as diversas transformações da imagem que Gretta opera por meio de sua criação artística, como um mergulho na busca pela própria identidade, passando pelo autorretrato com focos sobre seu rosto e seu corpo e a imagem genérica de um corpo feminino que se dissolve tanto que chega a perder a face. Nessa procura por algo que Gretta chama de “essência”, a artista desdobra as imagens que faz de si mesma em uma série de repetições, um gesto obstinado que materializa uma crise, com questionamentos sobre a condição da mulher e os estereótipos de feminilidade que intentam formatar e limitar sua potência de vida.
Nesta mostra estão agrupadas 40 peças da multidão de fotolitos positivos e negativos produzidos por Gretta para serem reproduzidos em impressos e livros, compondo as séries “Auto-Fotos” (1975), “Transformações” (1976-77) e “Diário de uma Mulher” (1977). Alguns deles foram ampliados para a projeção em desenhos, gravuras e pinturas. Do amplo conjunto de pinturas, as dez selecionadas são derivadas de “Transformações”, com ênfase no rosto de Gretta, e “Diário de uma Mulher”, que enfoca seu corpo. Introduzimos também uma peça inacabada da série que Gretta começou a criar logo em seguida, em 1979, “Trabalhos do Corpo”, e que retomou em meados dos 1980 – apontando para os caminhos que trilharia ao longo das décadas seguintes até o presente.
Seu trabalho é obsessivo e repetitivo, e está baseado na transposição de uma imagem sobre outras superfícies. Distorce as imagens pela manipulação do papel no ato de revelação ou no desenho ampliado de suas projeções em tela, pela sobreposição de camadas de cor em tinta. Cada imagem tem um lugar no longo espectro de introversão e extroversão que constitui sua obra, derivando em peças que recebem títulos e são seguidas de uma numeração para as réplicas em séries e subcategorizações em partes, com códigos para cada detalhe derivado de uma mesma imagem. Esse trabalho repetitivo lembra a maneira com que o modesto e metódico escriturário Sr. José, protagonista do romance Todos os Nomes de José Saramago,[iii]começa a romper com a tradição e desrespeitar as regras estabelecidas, abrindo espaço para uma aventura de acontecimentos grotescos. Assim também são as retransformações de Gretta Sarfaty mostradas nessa exposição, os rastros materiais de uma constatação: “a auto-identidade é uma ilusão”[iv].
Tálisson Melo
[i] Mikhail BAKHTIN. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981, p.48.
[ii] Olney KRÜSE. “Como uma artista criativa faz um manifesto (visual) inteligente: Gretta e o Processo Criador”. O Destaque Art’s, n.6, 16 de fevereiro 1976, p.8. [Este ensaio de Krüse compõe a seleção de documentos exposta na mesa de vido instalada na biblioteca do auroras.]
[iii] José SARAMAGO. Todos os nomes. São Paulo: Companhia da Letras, 2007.
[iv] Leyla PERRONE-MOISÉS. A ficção como desafio ao Registo Civil. Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 151/152, Jan. 1999, p. 431.