Em Aquarius, filme de Kleber Mendonça Filho lançado em 2016, Sônia Braga interpreta Clara, a última moradora de um prédio localizado na orla da praia de Boa Viagem, no Recife. Apesar do assédio constante de uma construtora que tem planos de erguer ali um condomínio maior e mais moderno, Clara se recusa a vender seu imóvel e se mudar. Quando confrontada pela filha, a personagem deixa claro que não está disposta a abrir mão das lembranças que o apartamento lhe traz: o lugar que dividiu com o marido, onde criou seus filhos, se divertiu, chorou, foi feliz e viveu tristezas. A filha, que já não morava no apartamento há anos, parece não entender o argumento de Clara – como é possível recusar uma proposta tão generosa? Mas de fato a arquitetura tem esse poder sobre as pessoas. Depois de algum tempo de convivência, é como se ela fizesse parte da família. Ao testemunhar tudo que se passa ali dentro, ela se deixa impregnar de memórias, de afetos e sentimentos, tornando-se uma confidente silenciosa para as pessoas que a ocupam pelo tempo suficiente.
Renato Pera entendeu isso e tratou de materializar esse aspecto da arquitetura na obra Sangue, na qual o artista traz à tona esse manancial de sentimentos e memórias entranhado no espaço arquitetônico e o deixa visível, à disposição de todos. Em sua instalação, aquilo que dá vida à arquitetura de forma normalmente tão discreta, arrebata o espaço e alcança as pessoas de maneira implacável, expelido pelas paredes, tal qual um ser metabolizante – uma criatura que sangra em vermelho vivo, arterial. O impacto visual causado pela cor no limite da saturação é marcante, mas a visão não é o único sentido exigido pela obra. Faz parte do trabalho um áudio que inunda o espaço com a voz de José Mojica Marins ditando, no estilo mais caricato de Zé do Caixão, uma receita de frango ao molho pardo que traz o sangue novamente à pauta.
Apresentada pela primeira vez no Sesc Santana em 2016, a obra ganha ainda mais potência na versão de 2020 exibida no Auroras, e isso se deve a dois pontos principais. O primeiro está ligado ao espaço que a nova montagem ocupa: uma sala pequena e fechada sobre si mesma, transformando a instalação em uma verdadeira cabine sensorial, onde toda a atenção e todos os estímulos se voltam para a temática proposta pelo artista. Nessa cabine, não apenas a visão e a audição são demandadas, como já mencionado antes, mas também o tato – diante do material extremamente liso, intercalado com a textura das gotas que se projetam da superfície da parede – e também o paladar, ou pelo menos a lembrança dele, provocada pela receita que se ouve.
O segundo ponto está relacionado à história da própria edificação: um imóvel planejado e construído para ser residência, no qual pessoas de fato moraram e deixaram suas lembranças e afetos, mas que hoje é ocupado por uma instituição de arte. Esse aspecto inaugura na obra uma nova camada até então não revelada: no Auroras, Sangue se apropria das memórias de pessoas reais e as expõe como obra. Isso implica em um conflito entre público e privado que é muito coerente com a casa que, após metamorfose, veste-se de espaço expositivo – o antigo refúgio que agora se abre ao coletivo. Reforçam esse conflito as placas que recobrem as paredes do vermelho intenso e refletivo: elas fazem as vezes de azulejos, elementos muito familiares ao ambiente doméstico, mas improváveis em uma galeria de arte.
Em Sangue, Renato Pera mostra que a arquitetura é viva e capaz de sangrar. No entanto, a contrário da galinha que sangra para a morte, a arquitetura sangra para a renovação, para a metamorfose, à espera do próximo estrato de memórias que irá se aderir indelevelmente às suas superfícies, para depois sangrar de novo.
Ulisses Castro