O amor pelo pequeno
“A sua pequenez é, ao mesmo tempo, um todo e um fragmento.
O amor pelo pequeno é uma emoção infantil”
Marcel Duchamp imaginado por Enrique Vila Matas
Pequenas pinturas têm um passado rico e celebrado, avessas à grandiosa afirmação visual em favor de uma leitura mais doméstica e localizada. O menor nos seduz por muitos motivos, dentre eles a possibilidade de imaginar que estamos lidando com algo desvinculado das grandes linhas do senso comum – o pequeno como antagonista do majoritário, avesso daquilo que nutre uma opinião em torno de certa centralidade reconhecida como evidente.
Mas a escala mínima permite, antes de tudo, a fácil circulação dos objetos, e a portabilidade como promessa de autonomia é algo que atravessa a história da produção criativa. Lá no princípio dos homens, os paleolíticos já carregavam de um lado pro outro as venuzinhas de terracota, cultuando curvas e desejos. Caberia muita coisa nessa lista: os muiraquitãs amazônicos, os netsukes japoneses, as illas bolivianas, as guias do candomblé, o escapulário católico, a figa romana, o hamsá islâmico, a foto da pessoa amada na carteira…. O pequeno nos faz companhia, nos deixa menos sós.
Além disso, o miúdo nos exige certo grau de intimidade, nos fazendo aproximar o corpo do objeto, acercar o olho, curvar a coluna e quem sabe farejar um resto de cheiro da matéria dada ao campo de visão. Pequenas obras convidam o público a abandonar a experiência visual às vezes rápida e arrebatadora da tela maior por uma visão mais matizada e medida. A visão aguda substitui a “periférica”, na promessa de que ocorra um envolvimento mais ativo. Noutras palavras, é muitas vezes com pequenas pinturas que experimentamos um “corpo a corpo”, acompanhados da estranha e sedutora sensação de que estamos diante de singelos segredos sussurrados.
O pequeno formato também permite, em alguns casos, um maior desprendimento e entrega à experimentação. Nas visitas aos ateliês, não é raro toparmos com miniaturas que apontam novos capítulos por vir, como pequenas frestas produzidas no léxico dos artistas. Ao contrário dos formatos maiores, o pequeno convida a mão a exercitar o erro, isto é, traçar e vislumbrar novos caminhos dentro da pesquisa; é o pequeno enquanto esboço e projeto, aposta autorizada no não sabido. Noutra via, tal liberdade também nos aproxima da ludicidade infantil, nos conectando ao imaginário dos brinquedinhos, casas de boneca e pecinhas dos jogos de tabuleiro, e que menciona, por sua vez, tudo aquilo que não deseja ser necessariamente oficial, passando despercebido entre maletas, bolsos, carteiras, caixinhas, garrafas ao mar, corvos mensageiros e pombos-correio.
Mas há pouca ou nenhuma regra por aqui – lembremos que algo fundamental para as práticas artísticas contemporâneas é justamente a sua impropriedade e, portanto, nos cabe a sensibilidade de disputar o impróprio no trânsito entre o coletivo e o particular, sem maiores generalizações. Se há aqueles que encontram no pequeno o convite à errância, há também, na via inversa, os que assumem tal formato como território para exercer a minúcia com ainda mais plenitude, controlando o percurso de cada fio do pincel sobre a superfície. Daí, não falamos da mão solta do rascunho propositivo, mas da mão que lapida a joia: a mão cirúrgica.
Outra confusão que deve ser desfeita é a de que a forma breve seja, consequentemente, uma forma sintética. No campo visual, há pequenas obras que carregam consigo “imensas cosmologias, sagas e epopéias encerradas nas dimensões de um epigrama”, tomando aqui emprestado algumas palavras de Italo Calvino. O mínimo também sabe ser barulhento e ambicioso, quando assim lhe convém. José Paulo Paes dizia que Manuel Bandeira era um poeta “menor menormenormenormenor”. São, ao seu modo, expansivas e cósmicas essas pinturinhas que aqui vemos.
Por fim, é inevitável reconhecer que o conjunto que apresentamos nesta mostra habita, antes de tudo, uma casa, reforçando assim o convite ao doméstico. Quando o Auroras se fundou como um espaço de arte, há seis anos atrás, foi com uma exposição coletiva de Pequenas Pinturas que tudo começou. Seguimos aqui exatamente o mesmo princípio. Não há recursos narrativos ou temáticos que justifiquem a aproximação de todos esses nomes. O que os une, o que nos une, é o amor pelo pequeno, o desejo de jogar com ele e observar quantos infinitos cabem em cada um desses fragmentos. Dividimos o conjunto em dois atos e esperamos que o público possa costurar seu próprio percurso, topando, de um cômodo ao outro, com essas estranhas criaturinhas. Reforço que o pequeno, na sua intimidade, é o que torna a companhia possível – ele muitas vezes nos requisita vizinhanças e agrupamentos, a prática de estar-junto. Aqui, em grande quantidade, as pequenas pinturas são um povoado de espécies ainda desconhecidas por nós, a um só tempo estranhando e aninhando a casa.
Pollyana Quintella