ANTONIO DIAS: AMICI DEL QUADRATO / COME LAVORA L’ARTISTA / SI RACCONTA
AMICI DEL QUADRATO
Em uma conversa com o crítico Paulo Sérgio Duarte, por ocasião do lançamento de uma edição da revista Serrote, Antonio Dias disse de passagem, enquanto respondia a uma pergunta de Tunga sobre o consenso da crítica de arte brasileira em torno do assim chamado “projeto construtivo”: “Não me interessa fazer um quadradinho e dizer: ‘é um quadrado’. Isso eu já sabia na escola. Interessa dizer que é escuro, dentro tem alguém nu e você não sabe o que vai acontecer. Pronto, aí já transformou o quadrado em uma sala”.
Pode parecer um comentário trivial, mas ele aponta para uma intensidade evocativa fundamental para a reflexão sobre as mais de cinco décadas de produção de Antonio Dias.
É fácil perceber a ironia crítica do comentário em relação a abordagens tautológicas e autorreflexivas da arte concretista, comparáveis, por analogia, a certos paradigmas da arte conceitual. Para quem diz: “Um quadrado é um quadrado”, ou vaticina: “Uma cadeira é uma cadeira”, Antonio Dias responde: “Isso eu já sabia na escola” e assim afirma que a circunscrição dos processos criativos e cognitivos da arte a séries fechadas de fórmulas e equações pode fazer dela, a arte, mero decalque do saber técnico, ainda por cima em sua versão rebaixada (sem experimentação e sem dúvida), parecida com a que se reproduz nas apostilas didáticas. Mas essa crítica não significa que ele preferiria deixar de “fazer um quadradinho” – ele nunca deixou de fazê-lo. As práticas estruturantes do concretismo, do construtivismo e da arte conceitual estão entre os fundamentos sobre os quais edificou seu trabalho. A diferença, porém, é que ele sempre se propôs a algo que transborda as demonstrações lógicas, visando a alguma outra coisa (poética, prazer, jogo, sedução, podemos chamar como quisermos), como, por exemplo, imaginar que um quadrado ou qualquer signo podem evocar muito mais do que efetivamente mostram.
Aqui, é importante sublinhar: trata-se de evocar, mais do que de mostrar. Esse sempre foi o seu desafio. O primeiro grande conjunto da obra de Antonio Dias, criado entre meados de 1964 e meados de 1968, é carregado de signos e elementos alegóricos que funcionam como fragmentos de narrativas. Há formas macias e voluptuosas pintadas de vermelho, ossos e silhuetas em preto e branco, índices de explosão e ícones de armas… Não há, porém, enredos completos, fábulas morais com começo, meio e fim. Desde suas cores saturadas até os contornos de forte tratamento gráfico, essas pinturas transpiram algum odor de sangue, carne, sexo e saliva – mas quem é que pode dizer exatamente o que está figurado em cada quadrante delas? Até seria plausível fincar o debate sobre essas obras em noções de ambivalência e ambiguidade, não fossem os títulos dos trabalhos, como “programação para assassinato”, “os restos do herói”, “o carrasco”, “nota sobre a morte imprevista” e tantos outros que pendem a balança para interpretações carregadas de som e fúria.
A primeira visada para o que Antonio Dias produziu no período seguinte, que se estende da segunda metade de 1968 até finais da década de 1970, pode inferir que toda essa força evocativa foi posta de lado, à medida que os signos gráficos explícitos de sua pintura foram gradualmente reduzidos e condensados, até a situação-limite de suas pinturas negativas, inteiramente negras, com apenas uma palavra ou sentença em branco, somada, quando muito, a uma fina linha de contorno e respingos de tinta também brancos. Não é bem assim. Mesmo sem fragmentos de figurações libidinosas, as obras desse período são mais, e não menos, evocativas que suas antecessoras, na medida em que trazem a sugestividade de seus títulos para a própria superfície da tela, muitas vezes para o centro da composição. Nesses trabalhos, tão espartanos na sua quantidade de elementos, cada detalhe importa e, em curto-circuito com as palavras em cena, reforça algum sentido alegórico, conceitual ou crítico. Nesse ponto, entram em cena diversos procedimentos de concentração e organização de informações típicos do desenho projetual, ainda que não exista propriamente um projeto a ser construído, senão na cabeça do artista e de seu público.
Na segunda metade da década de 1970, a produção que empregou os chamados “papéis do Nepal” abriu espaço para a introdução de outra variável nas equações evocativas de Antonio Dias: a significância da matéria pictórica, ou seja, o reconhecimento da espessura, da textura, da cor e do sentido do suporte como parte ativa da imagem. A partir da década de 1980, essa atenção somou-se à voracidade na assimilação e combinação de atitudes e faturas pictóricas diversas, em uma abertura autoconsciente de repertórios e recursos.
Chegamos, enfim, ao território de onde vêm as obras reunidas nesta exposição.
COME LAVORA L’ARTISTA
Uma pintura de 1980 acolhe os visitantes da mostra. Sobre um fundo ocre, camadas de cor se sobrepõem e definem, por recortes vazados em sua superfície, alguns ícones que poderiam ser lidos como uma bandeira com uma parte faltante, um machado e a palavra “paint” (tinta) grafada em caracteres inspirados em caligrafias orientais. A relação entre essas camadas e signos remete sutilmente a processos serigráficos, em que telas gravadas são usadas como máscaras para a aplicação de tinta. A palavra promete pintura, o processo a entrega, mas se vale de processos gráficos inusuais.
Pistola (1986), o trabalho que dá seguimento à mostra, introduz alguns aspectos fundamentais do conjunto aqui reunido. Ele resulta da colagem de papéis, não mais os papéis de arroz recolhidos pelo artista no Nepal, mas a prosaica substância das folhas de jornal. Mole, frágil e descartável, esse material recebe camadas de tinta de tons avermelhados terrosos e é fragmentado por corte ou por rasgo, conformando, assim, elementos plásticos avulsos, então colados na superfície de uma folha de papel-jornal pintada de marrom-escuro, marcada também pelo vermelho aplicado com traços gestuais, quase como se aplicados com a ponta dos dedos. O centro da forma que dá nome à obra permanece sem pintura, deixando reconhecível a origem prosaica de sua matéria-prima.
Como aponta o pesquisador Luiz Renato Martins, é importante refletir sobre a adesão de Antonio Dias a esses recursos no contexto geral do “retorno à pintura” que marcou a década de 1980 pelo mundo, com força especial no Brasil e na Itália, dois países de residência do artista (que se somam aos casos paradigmáticos de Alemanha e Estados Unidos, entre muitos outros países). Não pode ser simples coincidência a imersão de Antonio Dias em repertórios pictóricos mais complexos e adensados nesse período, porém não se deve crer também que o que estava em curso era uma simples adesão a um repertório hegemônico. Como é constante em sua trajetória, o artista aproxima-se da sintaxe plástica vigente para criticá-la de dentro para fora. Os gestos e faturas pictóricos se multiplicam, mas nunca convergem para uma lógica “expressiva” pura, que sugeriria correspondência direta entre a interioridade emocional do artista e as pulsões imagéticas que lança livremente sobre a tela. Para Antonio Dias, o incremento da matéria significante acontece sempre em tensão com esquemas articuladores de matriz icônica ou conceitual, vocábulos de uma gramática reflexiva que opera, como já fazia desde as fases anteriores, pela repetição, variação e condensação de formas pré-moldadas, como, nesse caso, a pistola/retângulo com uma parte faltante e a borda/limite retangular proporcional ao formato do quadro. Em outras palavras, há gesto, mas isso não soterra o raciocínio lógico inerente à produção do artista.
Na sequência da montagem, Sem título (1986) reitera os procedimentos gráficos e pictóricos em jogo e os multiplica pelo acumulo de camadas e elementos. A tela aparente deixa claro que se tratam de materiais moles aplicados sobre outros materiais moles. Em seguida, encontram-se Fornalha (1985) e duas obras Sem título de 1983. Nelas, as figuras dominantes, aplicadas sobre o papel-jornal, evocam plantas arquitetônicas e mapas de territórios. A um só tempo ecoando signos recorrentes na produção prévia e prefigurando marcas comuns à obra posterior do artista, as imagens estabelecem subdivisões e relações de proporção entre formas esquemáticas. No lugar dos territórios isotrópicos – homogêneos, com contornos nítidos sobre superfícies rígidas – sugeridos em pinturas e instalações das décadas de 1970 e 1980, conformam-se zonas de conflito montadas sobre a matéria mole dos jornais. Ora recoberta, ora revelada pela velatura das camadas de tinta de diferentes densidades, a tessitura do texto jornalístico (em italiano, pois eram de Milão os jornais utilizados por Antonio Dias) apresenta-se antes de tudo como interferência cromática e marcação de ritmo. Apenas pontualmente é possível reconhecer o conteúdo informacional desses periódicos, quando algumas palavras e sentenças parciais se fazem legíveis. Na verdade, mais uma vez, a ênfase está no potencial evocativo do material, não em seu discurso denotativo.
Os subtítulos deste texto foram todos retirados desses raros momentos de legibilidade. Não é à toa que esses fragmentos de frase se prestam a articular esta reflexão crítica sobre as obras de Antonio Dias. Para ele, a arte muitas vezes é, simultaneamente, representação e crítica de arte. Mas não apenas isso, não apenas uma reflexão do trabalho artístico: também uma alegoria do seu tempo e dos conflitos políticos e existenciais que o circundam. Nesse sentido, a escolha dos jornais como matéria, mesmo quando ilegíveis (ou especialmente quando ilegíveis), é significativa por trançar um solo comum a partir do próprio fluxo dos acontecimentos cotidianos, com suas facetas mais banais e violentas.
Adiante na exposição, os trabalhos Dois ossos (1986), Seis espíritos (1986) e Fantasma (1986) expandem essa prática ao implicarem também outra ordem de silhuetas e signos. Como enunciam os títulos, podemos encontrar ossos, espíritos e fantasmas, mas não é preciso muita imaginação para enxergar também formas fálicas, órgãos e feridas. É o vocabulário da primeira fase da produção de Antonio Dias que entra em cena, trazendo consigo um deslizamento do sentido das cores terrosas empregadas: menos associadas ao chão, elas agora estão mais próximas da carne e do sangue.
Fantasma, especialmente, está diametricamente oposta à possibilidade de comparação da pintura com um projeto. A combinação da moleza do papel-jornal pintado com a rigidez espessa do papel-cartão faz com que a imagem descole de sua bidimensionalidade. Além disso, alguns pontos circulares em alto-relevo somam-se às texturas aquosas da aplicação das tintas e, especialmente, aos pontos de cor azulada que transparecem aqui e ali, para criar um feitio de matéria reagente, sujeita a algum tipo de oxidação, ferrugem ou coagulação – massa viva. O efeito é completado pela presença de quatro tiras de jornal pintadas de amarelo e cruzadas duas a duas como duplas de esparadrapo em “X”. Diante desses elementos, vêm imediatamente à memória os filmes da série The Illustration of Art e, com isso, a impressão de que a própria pintura poderá começar a sangrar a qualquer momento.
SI RACCONTA
A seção final da exposição traz três pinturas de maior escala – Sem título (1983-5), e Labor Berlin (1989) – junto a quatro aquarelas de 1985. Reunidas, essas pinturas formam uma espécie de súmula da produção de Antonio Dias, como tábulas de compilação de gestos e símbolos. Ao mesmo tempo, servem como demonstração da complexidade do repertório pictórico que interessava naquele momento ao artista, com tantas variações de materiais, superfícies, densidades, pinceladas e saturações mesmo em um conjunto tão conciso. Mesmo o modelo compositivo e o modo de abordar a superfície da pintura são notavelmente diferentes entre esses três trabalhos.
Tamanha diversidade pode ser tomada como um sinal de que a obra de Antonio Dias, mesmo parecendo estar prenhe de enigmas, alegorias e charadas, é na verdade um exercício muito direto de apresentação de coisas e formas. É como se não fosse importante desvendar as verdades anteriores ao nascimento dos trabalhos, as emoções e opiniões íntimas do artista, mas, sim, confrontar-se diretamente com as obras em suas especificidades e deixar-se arremessar para alguma nova verdade inventada, provisória e particular – arranjada no encontro do olhar com os vetores evocativos que atravessam os trabalhos.
Em uma das aquarelas, há dois corpos-órgãos que se tocam apenas pela tangente. Possuem uma simetria imperfeita, como se estivessem se encarando em um espelho deformado. A massa central de um é definida pelo contorno, e a do outro nasce de uma mancha irregular posteriormente delimitada por uma linha vermelha. A extremidade do primeiro é sólida, a do segundo é irregular e aquosa. O que esses corpos contam? O que nós seríamos capazes de contar olhando para eles?
Lembrando o comentário de Antonio Dias citado no início deste texto, é importante salientar que não há nada que diferencie de modo conclusivo um quadrado preto que é simplesmente um quadrado preto daquele que abriga dentro de sua penumbra um homem nu à espera de um acontecimento. Ainda assim, acredito que a produção de Antonio Dias é uma demonstração considerável de que esses dois quadrados são, sim, distintos e inconfundíveis.
Paulo Miyada
Julho de 2018