Maíra Dietrich – Escrever sobre Ler
02 Julho — 10 Setembro 2022
Maíra Dietrich
Escrever sobre Ler
02 Julho — 10 Setembro 2022

O auroras tem o prazer de apresentar Escrever sobre Ler de Maíra Dietrich no espaço da biblioteca. As colagens da série falam sobre a experiência da escrita e da leitura, através de relatos, desenhos e observações sobre a figura da leitora e o espaço da biblioteca. Baseado no interesse da artista em pensar a linguagem enquanto fenômeno físico, as páginas de texto e imagem se fundem, cada colagem é formada por fotografias, textos impressos, desenhos e objetos que escrevem na sua sobreposição.

O texto de Escrever sobre Ler, foi escrito originalmente escrito em inglês como Writing about Reading, apresentado como dissertação de mestrado no KASK School of Arts em Ghent, na Bélgica em 2018. Em 2021 uma segunda versão do trabalho foi apresentada na exposição “Biblioteca: floresta” com curadoria de Galciane Neves no Sesc Belenzinho, dessa vez traduzida para o português, com 22 capítulos montados diretamente sobre a parede.

Nesta exposição, 11 capítulos da série estão montados entre peças de acrílico fixadas com metal, onde esses elementos de preservação e sustentação são incorporados ao trabalho. Para a instalação no espaço da biblioteca do auroras a artista criou suportes metálicos que desenham no espaço, dando uma camada instalativa que amplifica o ficcional entre o espaço físico da biblioteca e o espaço reflexivo evocado pela artista na série de colagens. Tanto nesse gesto instalativo, quanto na dinâmica de forças dentro de cada colagem, o espaço, o suporte e a montagem parecem ser incorporados na dinâmica de força do trabalho, se comportando também como campo de linguagem.  

Fotografia: Ding Musa
Obras
Fotografia: Julia Thompson
Escrever sobre Ler - Capa, 2022
Impressão em papel vegetal, impressão em papel Couché
suportes de metal e acrílico
48 x 33 cm
Escrever sobre Ler - Começando, 2022
Impressão em papel vegetal, impressão em papel Couché
liquid paper, desenho em grafite, suportes de metal e acrílico
48 x 33 cm
Escrever sobre Ler - Diários, 2022
Impressão em papel vegetal, impressão em papel Couché
suportes de metal e acrílico
48 x 33 cm
Escrever sobre Ler -Privacidade, 2022
Impressão em papel vegetal, impressão em papel Couché
suportes de metal e acrílico.
48 x 33 cm
Escrever sobre Ler - /pˈoɾ.kɨ/, 2022
Impressão em papel vegetal, impressão em papel Couché
papel seda, suportes de metal e acrílico
48 x 33 cm
Escrever sobre Ler - Densidade média, 2022
Impressão em papel vegetal, impressão em papel Couché
suportes de metal e acrílico
48 x 33 cm
Escrever sobre Ler - De Krook, 2022
Impressão em papel vegetal, impressão em papel Couché
papel seda, suportes de plástico, parafusos e acrílico
48 x 33 cm
Escrever sobre Ler - Listão, 2022
Impressão em papel vegetal, impressão em papel Couché
suportes de metal e acrílico
45 x 33 cm
Escrever sobre Ler - Mão e Boca, 2022
Impressão em papel vegetal, impressão em papel Couché
desenho em grafite e caneta, suportes de metal e acrílico
48 x 33 cm
Escrever sobre Ler - Dentro dos livros, entre os livros, 2022
Impressão em papel vegetal, impressão em papel Couché
suportes de metal e acrílico
53 x 33 cm
Escrever sobre Ler - Eu e Nós, 2022
Impressão em papel vegetal, impressão em papel Couché
papel seda, suportes de metal e acrílico
48 x 33 cm
Texto Crítico
Fábio Morais

A mina em itálico encostada na parede

Por Fabio Morais

 

A luminosidade natural entra por uma claraboia e é rebaixada ao ser absorvida pela madeira escura das estantes. As prateleiras estão abarrotadas de livros de arte cujos tombos dão um colorido festivo à biblioteca, com seus projetos gráficos que se rendem à cor como grande sedutora visual. Há uma jovem imersa nesse ambiente amadeirado e ao mesmo tempo colorido. Encostada na parede, ela toca a laje do mezanino que serve de corredor da parte superior da biblioteca. A mina parece conferir alturas enquanto pensa no que fazer com tantos pés-direitos.

Convidada a expor nessa biblioteca, ela precisa preparar o ambiente para a exposição, semelhante a quando a editora prepara textos a ser publicados. Textos chegam prontos, porém brutos, e precisam sempre de um toque que os transforme de arquivo word em profissional de interlocuções editoriais. Um toque semelhante ao que essa biblioteca precisará para trajar seu novo modelo: o de espaço expositivo.

A desenhista tem a ideia de, para expor as obras da artista, intervir no espaço da biblioteca com a mesma desenvoltura de alguém que desenha em cima de fotografias em uma revista de design de interiores.

Toda arquitetura é um recipiente para intervenções: o vai e vem de corpos, um móvel que entra, um tapete trocado e, no caso de uma biblioteca, cada livro que chega ou sai, alterando a trama epistemológica local. Com hastes que fingem sustentar tetos e prateleiras, a desenhista intervém na biblioteca traçando o ar próximo a nichos e mezaninos, riscando retas azuis no vazio que sustenta pés-direitos. A desenhista pensou em uma intervenção que fosse gráfico-tridimensional, com seus firmes traços azuis cortando o ambiente, mas que fosse também funcional, dando à designer de exposição a possibilidade de usar os traços-hastes como suporte. Neles, estão penduradas obras que a artista vem pesquisando e expondo há algum tempo, que foram reunidas e apresentadas em exposições coletivas e que, agora, se juntam para rearquiteturar a arquitetura, o ler e o escrever.

Voltando um pouco na história da artista: tudo começa quando a leitora escritora editora extrapola a quietude ensimesmada dos atos de ler e de escrever ao registrar as cenas inquietas dessa falsa quietude: mãos que manipulam livros e papeis escritos, páginas grifadas e marcadores coloridos que saltam de livros fechados. Nessas imagens, a artista eleva típicos verbos acionados pelas mãos – manufaturar, manipular, pegar, montar, amassar, desenhar, grifar etc. – a um papel tão protagonista, para o mundo escrito, quanto o do verbo escrever. A artista também escaneia textos de maneira desleixada e crua, semelhante a fotocópias de cartório. Alterna físicas sobreposições de papeis impressos com fluidas sobreposições de imagens digitais. Rasga e junta papeis para prensá-los entre sanduíches de acrílico de, quase sempre, 48 x 33 cm, submetendo-os a módulos poligonais também de acrílico, furando-os com rebites metalizados ou apenas deixando-os rasgados, em um gesto pendente para fora do limite emoldurador.

Toda essa manufatura lembra uma dj que pilota picapes de 48 x 33 cm, com as quais remixa materialidades e compõe mashups texto-imagéticos seguindo uma lógica de ritmos e beats visuais que sacudam o esqueleto – e as retinas.

Essa manufatura lembra ainda a bagunça de uma gráfica de offset, a área de serviço cuja estética de chão de fábrica é escondida pelo livro – produto editorial limpo e refilado – e ainda esnobada pela bibliofilia. Ler e escrever são verbos operários. É como uma operária de chão de gráfica que a leitora escritora editora artista parafusa peças gráficas em outras peças gráficas, ajusta a mecânica imagética de objetos físicos, enfia semiopráxis na semiótica e, remixando imagens bidimensionais impressas com a tridimensionalidade de objetos acrílicos e metalizados, pragmatiza e esfria o quentinho romântico do universo dos papeis, dos livros e das leituras. Todos esses procedimentos fabris margeiam a esteira rolante que deposita, no fim da linha de produção, o que se poderia chamar de obra da artista, ou, apenas, de seu depoimento sobre o escrever e o ler como atos tão físicos quanto o de fabricar artefatos.

Tantas manipulações verbo-imagético-físicas formatando objetos só poderiam resultar na designer de objetos que, ao aceitar expor em uma biblioteca, convoca a designer de exposição a esticar para a arquitetura o modus operandi concentrado em cada 48 x 33 cm pela artista leitora escritora editora. Daí o redesenho do espaço, semelhante a traços azuis em papel vegetal sobreposto a uma imagem impressa da biblioteca. Daí a exposição-instalação-site-specific-bricolagem dando a sensação de se estar em frente a figuras de 48 x 33 cm, coladas de modo travesso em sérias revistas de bibliofilia, e não em álbuns de figurinhas. Daí um redesenho do espaço com movimentos visuais tão cerimoniosos quanto uma pesquisa circunspecta ao acervo de livros: o deslocamento sutil de entes azuis espalhando-se pela biblioteca e trepando pelas estantes, tocando o chão, tetos e prateleiras com delicados ajustadores que deixam as obras nas pontas dos pés enquanto tocam o alto com as pontas dos dedos.

Nesse redesenho do espaço, a artista leitora escritora editora trabalha mais com o nonsense de um site specific que aterrissa em uma repentina clareira, de onde pode levantar outros voos, do que com a fidelidade bem calculada, mimetizante e austera de um site specific que, ao ler os manuais anglo-saxões do que deve ser um site specific, se encaixa perfeitamente no lugar, apenas naquele lugar, tão somente naquele lugar, para nunca mais.

Se é possível dizer que uma escritora organiza o logos no discurso verbal arranjando imaterialidades semânticas e sonoras, enquanto uma artista organiza a existência de coisas no locus que ritualiza estéticas físicas, então se poderia pensar que essa exposição – Escrever sobre Ler, de Maíra Dietrich, na biblioteca do auroras – é um arranjo, um rito, um pouso na clareira que o locus abre para o voo do logos, ou que o logos oferece para a aterrissagem do locus, tanto faz quem toma a iniciativa da relação – sabe-se que, na manhã seguinte, ninguém mais lembra desse tipo de detalhe. Nessa relação, ao invés de sublinhar e grifar os livros da biblioteca, sublinha-se e grifa a própria biblioteca, com os bibliobjetos produzidos a partir da ideia de que Escrever sobre Ler é algo tridimensional, matérico, visual e gráfico: traço, risco, haste, corte, grifo. Corpo.

 

Maíra Dietrich (1988, Florianópolis) é bacharel em Artes Plásticas pelo CEART-UDESC e mestre em Fine Arts pelo KASK School of Arts. Trabalha texto e linguagem como fenômenos auto-reflexivos, através de video, instalação, performance e ficção. Apresentou exposições individuais “Visão Periférica” no Paço das Artes, São Paulo; “Spelling P” na 019, Ghent, Bélgica; “Peripheral Vision” no MAP, Ghent, Bélgica e “Escrito” na Fundação Badesc, Florianópolis. Nas exposições coletivas destacam-se,2045” no Palais de Beaux Arts, Paris, França; “Rosa Rosa Rosae Rosae” na Maison Pilgrims, Bruxelas, Bélgica; “Biblioteca Floresta” no SESC Belenzinho e “L’intolérable ligne droite” na Galerie Art & Essai, Rennes. Integra a Galeria de Artistas GDA e coordena a editora A Missão, focada em textos de artista. Vive e trabalha em São Paulo.