A mina em itálico encostada na parede
Por Fabio Morais
A luminosidade natural entra por uma claraboia e é rebaixada ao ser absorvida pela madeira escura das estantes. As prateleiras estão abarrotadas de livros de arte cujos tombos dão um colorido festivo à biblioteca, com seus projetos gráficos que se rendem à cor como grande sedutora visual. Há uma jovem imersa nesse ambiente amadeirado e ao mesmo tempo colorido. Encostada na parede, ela toca a laje do mezanino que serve de corredor da parte superior da biblioteca. A mina parece conferir alturas enquanto pensa no que fazer com tantos pés-direitos.
Convidada a expor nessa biblioteca, ela precisa preparar o ambiente para a exposição, semelhante a quando a editora prepara textos a ser publicados. Textos chegam prontos, porém brutos, e precisam sempre de um toque que os transforme de arquivo word em profissional de interlocuções editoriais. Um toque semelhante ao que essa biblioteca precisará para trajar seu novo modelo: o de espaço expositivo.
A desenhista tem a ideia de, para expor as obras da artista, intervir no espaço da biblioteca com a mesma desenvoltura de alguém que desenha em cima de fotografias em uma revista de design de interiores.
Toda arquitetura é um recipiente para intervenções: o vai e vem de corpos, um móvel que entra, um tapete trocado e, no caso de uma biblioteca, cada livro que chega ou sai, alterando a trama epistemológica local. Com hastes que fingem sustentar tetos e prateleiras, a desenhista intervém na biblioteca traçando o ar próximo a nichos e mezaninos, riscando retas azuis no vazio que sustenta pés-direitos. A desenhista pensou em uma intervenção que fosse gráfico-tridimensional, com seus firmes traços azuis cortando o ambiente, mas que fosse também funcional, dando à designer de exposição a possibilidade de usar os traços-hastes como suporte. Neles, estão penduradas obras que a artista vem pesquisando e expondo há algum tempo, que foram reunidas e apresentadas em exposições coletivas e que, agora, se juntam para rearquiteturar a arquitetura, o ler e o escrever.
Voltando um pouco na história da artista: tudo começa quando a leitora escritora editora extrapola a quietude ensimesmada dos atos de ler e de escrever ao registrar as cenas inquietas dessa falsa quietude: mãos que manipulam livros e papeis escritos, páginas grifadas e marcadores coloridos que saltam de livros fechados. Nessas imagens, a artista eleva típicos verbos acionados pelas mãos – manufaturar, manipular, pegar, montar, amassar, desenhar, grifar etc. – a um papel tão protagonista, para o mundo escrito, quanto o do verbo escrever. A artista também escaneia textos de maneira desleixada e crua, semelhante a fotocópias de cartório. Alterna físicas sobreposições de papeis impressos com fluidas sobreposições de imagens digitais. Rasga e junta papeis para prensá-los entre sanduíches de acrílico de, quase sempre, 48 x 33 cm, submetendo-os a módulos poligonais também de acrílico, furando-os com rebites metalizados ou apenas deixando-os rasgados, em um gesto pendente para fora do limite emoldurador.
Toda essa manufatura lembra uma dj que pilota picapes de 48 x 33 cm, com as quais remixa materialidades e compõe mashups texto-imagéticos seguindo uma lógica de ritmos e beats visuais que sacudam o esqueleto – e as retinas.
Essa manufatura lembra ainda a bagunça de uma gráfica de offset, a área de serviço cuja estética de chão de fábrica é escondida pelo livro – produto editorial limpo e refilado – e ainda esnobada pela bibliofilia. Ler e escrever são verbos operários. É como uma operária de chão de gráfica que a leitora escritora editora artista parafusa peças gráficas em outras peças gráficas, ajusta a mecânica imagética de objetos físicos, enfia semiopráxis na semiótica e, remixando imagens bidimensionais impressas com a tridimensionalidade de objetos acrílicos e metalizados, pragmatiza e esfria o quentinho romântico do universo dos papeis, dos livros e das leituras. Todos esses procedimentos fabris margeiam a esteira rolante que deposita, no fim da linha de produção, o que se poderia chamar de obra da artista, ou, apenas, de seu depoimento sobre o escrever e o ler como atos tão físicos quanto o de fabricar artefatos.
Tantas manipulações verbo-imagético-físicas formatando objetos só poderiam resultar na designer de objetos que, ao aceitar expor em uma biblioteca, convoca a designer de exposição a esticar para a arquitetura o modus operandi concentrado em cada 48 x 33 cm pela artista leitora escritora editora. Daí o redesenho do espaço, semelhante a traços azuis em papel vegetal sobreposto a uma imagem impressa da biblioteca. Daí a exposição-instalação-site-specific-bricolagem dando a sensação de se estar em frente a figuras de 48 x 33 cm, coladas de modo travesso em sérias revistas de bibliofilia, e não em álbuns de figurinhas. Daí um redesenho do espaço com movimentos visuais tão cerimoniosos quanto uma pesquisa circunspecta ao acervo de livros: o deslocamento sutil de entes azuis espalhando-se pela biblioteca e trepando pelas estantes, tocando o chão, tetos e prateleiras com delicados ajustadores que deixam as obras nas pontas dos pés enquanto tocam o alto com as pontas dos dedos.
Nesse redesenho do espaço, a artista leitora escritora editora trabalha mais com o nonsense de um site specific que aterrissa em uma repentina clareira, de onde pode levantar outros voos, do que com a fidelidade bem calculada, mimetizante e austera de um site specific que, ao ler os manuais anglo-saxões do que deve ser um site specific, se encaixa perfeitamente no lugar, apenas naquele lugar, tão somente naquele lugar, para nunca mais.
Se é possível dizer que uma escritora organiza o logos no discurso verbal arranjando imaterialidades semânticas e sonoras, enquanto uma artista organiza a existência de coisas no locus que ritualiza estéticas físicas, então se poderia pensar que essa exposição – Escrever sobre Ler, de Maíra Dietrich, na biblioteca do auroras – é um arranjo, um rito, um pouso na clareira que o locus abre para o voo do logos, ou que o logos oferece para a aterrissagem do locus, tanto faz quem toma a iniciativa da relação – sabe-se que, na manhã seguinte, ninguém mais lembra desse tipo de detalhe. Nessa relação, ao invés de sublinhar e grifar os livros da biblioteca, sublinha-se e grifa a própria biblioteca, com os bibliobjetos produzidos a partir da ideia de que Escrever sobre Ler é algo tridimensional, matérico, visual e gráfico: traço, risco, haste, corte, grifo. Corpo.