Digamos assim
João Bandeira
Você levantou um pouco as sobrancelhas, como se perguntando sobre a natureza do que estava a sua frente, mas nem deu tempo de formular nada. Porque logo veio essa voz, já no meio de uma frase, dizendo que, sim, eram todos parte de um mesmo grupo e que se destacavam sensivelmente dos demais da família a que pertencem – na verdade muito antiga, com idade contada em séculos e até milênios; Plinio, o velho, se referiu a ela – pela potência exacerbada e inédita de suas habituais capacidades. Em primeiro lugar, o excepcional poder de mudar de cores, e ainda mais, de misturar muitas delas por meio da chamada translocação de pigmentos pela pele (meio áspera e seca, como certas pedras e troncos, você pensou, enquanto acompanhava assombrado as alterações acontecendo e reparava nos restos de cores entremeadas com algumas mais fortes à primeira vista). Uma reação orgânica, ressaltou a voz, principalmente quando estão envolvidos em algum tipo de interação.
Claro que para a ocorrência desse fenômeno, ela continuava falando, o principal era a ação dos cianóforos, para os azuis, dos leucóforos, para o que as pessoas enxergam branco, e assim por diante com os demais cromatóforos, que, como você devia saber, não são exclusivos deles, ainda que particularmente ativos nesses seres inquietos. E, como se podia ver, demonstravam mais capacidades: realizar torções na padronagem de algumas partes do dorso, movimentos helicoidais ou expansões do centro para as bordas da pele, e outras que, com o tempo, iam aparecendo. Você iria acabar entendendo que essas coisas colaboravam para o funcionamento de uma espécie de sistema de alteração contínua no aspecto da pele deles, aliás feita de várias camadas, em si mesmas instáveis, e por isso, de quando em quando, certas áreas pareciam estar mais abaixo ou mais acima.
E mesmo não sendo o tempo todo assim, as camadas pareciam poder mudar de lugar sem nunca alcançar um fundo bem definido, conforme, a voz acrescentou, o insaciável Leonardo já havia concluído nas suas pesquisas; ele que, para impressionar as visitas, pregava uma barba postiça no seu lagarto amestrado. Embora isso não venha bem ao caso aqui, ponderou. Daí que, avistando-se um deles, dava, como agora, para apreender a configuração geral, mas era mais ou menos comum a pessoa ir ficando confusa – não, você não era o único –, porque olhando com atenção para uma determinada parte, por exemplo, às vezes ela já não era como segundos atrás, se subdividindo ou se aglutinando a uma outra, que antes será que estava ali? Tudo isso causava essa impressão de turbulência, o comentário frequente sobre uma sensação meio vertiginosa de entrever dimensões desconhecidas dentro do dentro deles, como alguém disse uma vez.
Provavelmente você já havia percebido que, além das flutuações na configuração da pele, eles incorporavam uma série de identidades. Não se sabe direito, hipóteses continuam a ser levantadas, talvez o segredo estivesse no misterioso poder que tinham de transmigrar através das muitas subespécies conhecidas, e até por outras jamais vistas, pelo menos ainda não catalogadas, sem com isso deixarem de ser eles mesmos. E como todas as subespécies são igualmente dotadas da famosa capacidade mimética, detalhes da aparência que estes em questão assumiam eram também, ela enfatizou, uma memória do que os seus parentes absorveram, digamos assim, em tempos e lugares diversos (aahhh…, você deixou escapar; e começou a achar que eles também reagiam mimetizando várias coisas dos humanos ao mesmo tempo: paredes ladrilhadas, cestas de basquete, estampas de roupas, páginas de Wentworth Thompson, fotos de satélites, jardins mal cuidados, proteções de tela de computador, a torre de Mendelsohn em homenagem a Einstein, o caracol de del Cossa, bebidas gaseificadas, ou, sabe-se lá, sardas, o pavilhão de uma orelha… Vai ver, taquigrafavam na pele até impulsos elétricos captados do cérebro de quem parasse na sua frente).
A criação em laboratório nesses viveiros retangulares transportáveis, lidando com as condições materiais básicas que permitem que eles se desenvolvam, mais do que apenas sobreviver, tinha sido decisiva para o aparecimento constante de novas aptidões. Especialmente por conta dessa capacidade de interação com os ambientes – nem sempre voluntária, é bom lembrar, ela disse (mas você duvidou, disposto a não ceder a tanta certeza, e, a essa altura, desejando em vão menos porquês). De tal forma que alterações ocorriam pela reação ao tamanho e à organização do espaço, às variações na incidência de luz, às diferenças de clima nas estações do ano etc., e sobretudo ao maior ou menor movimento de seres humanos perto deles.
As pessoas, por sua vez, começaram a acreditar que, com seu poder de absorção e transformação, eles poderiam aprender a falar. E, bem, como sempre acontece, isso terminou gerando uma falação sem fim de grupos aparentemente bem intencionados em volta deles. Porém com o passar do tempo a ideia principal de estarem ali foi sendo esquecida e muitas vezes as pessoas começaram a conversar entre elas mesmas, sobre comida, sobre viagens, sobre o aquecimento do planeta, dramas pessoais, futebol, o príncipe Andrew – mas isso é outra história, desculpou-se a voz (que, por falar nisso, é bom lembrar que só você ouvia). Seja como for, muita gente contava que em vários lugares onde os viveiros foram instalados algum tipo de vibração sonora foi constatada.
Já um estudioso deles havia afirmado que todo esse fluxo de fenômenos inusitados era artificial, provocado pela administração de determinadas substâncias, típico experimento de longa duração de um pesquisador independente e visivelmente bem informado. Na avaliação da voz, a se crer nessa explicação, a coisa seria então fruto do jogo entre a imaginação e os resultados obtidos por alguém que, por seu turno, parecia reagir a um ambiente de trabalho invernal (infernal? você ficou em dúvida se era o que a ela havia dito, mas não dava para perguntar, não demonstrava estar aberta ao diálogo). Talvez cansada de suas próprias elucubrações, a voz confessou que na verdade preferia a versão mais aceita de que tudo neles se devia a um primeiro camaleão que, perdido nas construções do observatório de Jaipur, teve uma visão de ser um caleidoscópio quebrado, mesmo assim girando indefinidamente.